A polêmica sobre a fabricação e liberação da “pílula contra o câncer” da USP de São Carlos se resume a uma questão principal: Por que ela ainda não foi testada em humanos, como preconiza a Ciência, antes de ser distribuída para a população?
Segundos os pesquisadores, o composto foi testado em humanos, mas sem os métodos obrigatórios por falta de apoio e verba da USP e de entidades de pesquisa. Estas, por sua vez, disseram não ter sido procuradas pelos cientistas. Agora, o ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação disse que vai investir R$ 10 milhões na pesquisa nos próximos 3 anos só a autorização pode levar até 1,5 ano para sair.
Além da necessidade de altas verbas, a burocracia que envolve a liberação dos testes em humanos no Brasil faz o país perder a chance de virar polo de pesquisa de medicamentos e, por consequência, a chance de permitir que pacientes testem novas drogas que aumentem sua qualidade de vida. Enquanto nos Estados Unidos um teste clínico é liberado em 90 dias, no Brasil geralmente demorar mais de um ano, segundo especialistas.
As cápsulas não podem ser consideradas remédio até terem registro da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e sua distribuição é considerada ilegal pela lei 6.360/76.
Dispor de mais verbas públicas para estudos e diminuir a burocracia para testes em humanos seriam soluções para que pesquisas como essa de São Carlos fossem resolvidas como mais rapidez.
Falta apoio
Em audiência no Senado, Gilberto Chierice, criador da fosfoetanolamina sintética distribuída no interior paulista, disse que a substância foi testada em humanos pelo hospital Amaral Carvalho de Jaú, seguindo regras do Ministério da Saúde. Ele diz não ter documentos da pesquisa, que estariam com o hospital. Procurados pelo UOL, tanto o hospital quanto o ministério afirmaram desconhecer qualquer teste clínico com a substância.
Já o pesquisador Marcos Vinicius de Almeida, da equipe de Chierice, disse que o grupo nunca conseguiu fazer os testes em humanos por falta de apoio da própria universidade e de entidades que poderia patrocinar o alto custo da empreitada.
Depois que o caso tomou grandes proporções, com pacientes conseguindo liminares na Justiça para ter acesso à droga, o Ministério da Saúde anunciou que criará um grupo de trabalho para apoiar os estudos clínicos e a produção da fosfoetanolamina sintética.
O Lafergs (Laboratório Farmacêutico do Rio Grande do Sul), do Rio Grande do Sul, também se prontificou a oferecer sua estrutura para os pesquisadores fazerem os testes em humanos, mas não possui dinheiro para financiar a pesquisa. Paulo Mayorga, diretor do Lafergs, espera poder contar com financiamento público e privado.
Burocracia impede chegada de verbas
Para especialistas consultados pelo UOL, o grande problema de se fazer pesquisas clínicas no Brasil, mais do que os custos que podem ser arcados pela indústria farmacêutica em parcerias com universidades ou por agências de fomento, está na burocracia envolvida.
No Brasil, pode demorar até um ano a liberação de testes em humanos que deve ser feita pelo governo, enquanto nos Estados Unidos e em países europeus isso acontece em até 90 dias.
De acordo com a Aliança Pesquisa Clínica Brasil, associação de pesquisadores e pacientes que trabalham para diminuir esse prazo, a morosidade no processo leva promissoras pesquisas brasileiras serem feitas fora do país, porque os patrocinadores geralmente farmacêuticas não querem perder dinheiro com a espera.
O resultado disso é a fuga de investimentos e empregos na saúde e na capacidade de aprimorar tecnologias. Sem pesquisas de medicamentos por aqui, diminuem também as chances de pacientes com doenças como o câncer se voluntariarem em testes que podem ajudar no tratamento da doença, segundo o endocrinologista Luis Russo, membro do comitê gestor da Aliança Pesquisa Clínica Brasil.
O prazo longo afugenta a indústria farmacêutica que é geralmente quem tem dinheiro para bancar os projetos. Segundo levantamento da Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa), no primeiro quadrimestre do ano, 16 estudos sobre câncer e outras doenças foram perdidos por sete empresas farmacêuticas que não quiseram esperar tanto tempo para a aprovação.
“A diminuição dos prazos regulatórios ajuda a baratear a pesquisa já que com a burocracia faz você demorar mais e gastar mais. Enquanto isso, o Brasil perde pesquisa até para a Argentina, onde demora quatro meses para se aprovar”, diz Russo.
O levantamento da Interfarma mostra, ainda, que a morosidade impacta a eficiência dos centros de pesquisa nacionais. Apesar de estar entre as dez cidades com mais instituições aptas a receber testes clínicos, a cidade de São Paulo usa menos de 50% dessa capacidade. São realizados uma média de 12 estudos em cada um dos 215 centros de pesquisa da capital paulista.
Por que demora tanto?
Para que um projeto de pesquisa clínica seja aprovado mundialmente, ele é submetido a duas etapas de avaliação: uma que passa por um comitê de ética e um de análise técnica. Em cada um são avaliados conceitos éticos e de segurança à saúde dos voluntários.
No Brasil, no entanto, há três etapas somente para aprovação: duas comissões de ética e uma técnica feita pela Anvisa, o que aumenta o prazo da autorização. Quando os testes em humanos são aprovados, os pesquisadores podem, enfim, recrutar voluntários que passarão por outras quatro fases de testes.
Na primeira etapa, os pesquisadores brasileiros enviam o projeto a um CEP (Comitê de Ética em Pesquisa) que o recebe e o analisa; essa etapa dura pelo menos 30 dias. Depois o projeto é passado para o Conep (Comitê Nacional de Ética em Pesquisa), que tem 60 dias para rever toda a papelada e pedir revisão. Caso haja necessidade de refazer algo, serão mais 60 dias para o Conep analisar. Por último, os pareceres das comissões chegam à Anvisa que tem pelo menos seis meses para avaliar.
Depois da aprovação, não raro os pesquisadores brasileiros precisam importar os insumos para os testes, o que pode atrasar ainda mais o começo da pesquisa. Feito isso, aí sim começam as fases dos testes clínicos com voluntários (não pagos).
Para Jorge Venâncio, médico e diretor do Conep, a diminuição do prazo já está nos planos do conselho, que nega que haja excesso de burocracia. Geralmente são necessários 30 dias para análise do CEP, que analisa 98% dos protocolos, e mais 48 dias para aprovação do Conep, em casos especiais, de acordo com o diretor.
Segundo ele, nem todas as análises de projetos de pesquisa clínica chegam até o Conep justamente para evitar prazos muito longos. “Há uma certa razão quem está reclamando que a análise ética dupla é burocrática, mas não há excesso de burocracia. Em 2013 tínhamos análises de 65 protocolos por mês e uma fila de 830 protocolos. Atualmente analisamos 250 por mês, com fila de 260. Houve uma mudança qualitativa”, diz.
Segundo o coordenador da Conep, o prazo estendido visa a segurança dos voluntários das pesquisas que são ‘cobaias’ do processo. “A função do sistena CEP/Conep é defender o direito das pessoas que participam da pesquisa clínica, evitando danos ao voluntário e garantindo que ele continuará recebendo a droga quando confirmada a sua eficácia. Pesquisas que não garantem isso devem ser revisadas ou são vetadas”, afirma.
Todos os voluntários devem assinar um termo de consentimento antes do começo dos testes. Voluntários de medicamentos geralmente são pessoas que já sofrem com a doença a qual o novo possível medicamento tenta tratar.
Fases da pesquisa
Na fase 1 do teste em humanos, até 80 pessoas são testadas para avaliar o quanto a substância é absorvida no organismo. Na fase 2, a substância é testada em até 300 pacientes com o objetivo de avaliar a eficácia e a tolerância do produto. Já na fase 3, acontece estudos em larga escala, na qual o efeito da nova droga é testado em comparação ao tratamento já reconhecido contra a doença.
Se os testes mostrarem que a medicação tem poder de tratar ou curar uma doença, o resultado é submetido à Anvisa que tem mais 90 dias para analisar e conceder o registro necessário para ser comercializado. Depois desse momento, há uma quarta fase, após o lançamento do produto, quando se estuda o remédio em comparação a outros da mesma classe.
Colocar um remédio no mercado envolve bilhões de dólares
A falta de recursos públicos para as pesquisas clínicas também é um problema, especialmente na área de medicamentos, já que somente essa fase da pesquisa pode custar mais de US$ 100 milhões colocar um remédio no mercado envolve bilhões de dólares.
Mais investimentos públicos ajudariam, inclusive, as instituições de fomento brasileiras a arcar com pesquisas clínicas, sem depender tanto da indústria farmacêutica. É neste ponto que o pesquisador Almeida bate ao dizer que o grupo não quer a interferência da indústria farmacêutica nos testes com a fosfoetanolamina.
Órgãos de fomento não têm verba para estudo clínico
A Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) afirmou não ter uma verba específica para pesquisas clínicas, e disse que não foi procurada pelos pesquisadores. Por e-mail disse que “não financia ensaios clínicos em seres humanos, que têm como objetivo final avaliar a toxicidade, segurança e a eficácia de novos medicamentos em seres humanos, pois isso é feito em geral pelas empresas farmacêuticas”.
Até outubro deste ano, o órgão recebeu mais de R$ 788 milhões do Tesouro Estadual para financiar pesquisadores do Estado.
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação também não tem uma verba específica para pesquisas clínicas, mas informou que a pasta repassa R$ 2 milhões via Finep (Financiadores de Estudos e Projetos) para a Unidade de Pesquisa Clínica em Neurologia e Neurociências do Hospital Universitário Antônio Pedro, da Universidade Federal Fluminense.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) disse ter sido procurada pelos pesquisadores da USP São Carlos apenas para consulta, mas não para requerer o pedido para começar a pesquisa clínica.
Em nota, a agência afirmou que “até o momento, não há qualquer pedido ou solicitação de anuência em pesquisa clínica para fosfoetanolamina junto à Anvisa. Também não há requerimento para avaliação de projetos contendo essa substância em programas assistenciais como uso compassivo e acesso expandido, ou seja, para acesso a produtos em fase de pesquisa”.
Fonte: Interfarma